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08/05/2018

Nabil Bonduki

O capitalismo brasileiro sempre tolerou e conviveu com as ocupações

Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo.

Dois ingredientes são essenciais para as ocupações como a da torre de vidro que se incendiou: a falta de moradia destinada à população de baixa renda e a existência de inúmeros edifícios ociosos.
A falta de moradia para os pobres é tão antiga como o Brasil urbano. A primeira ocupação noticiada ocorreu em 1897, no Morro da Favela (RJ), realizada por soldados egressos da Guerra de Canudos.
Desde então, organizadas ou não, elas não pararam de crescer. Cerca de 12 milhões de pessoas vivem em áreas urbanas ocupadas no país! No Rio, 22% da população mora em favelas e, em São Paulo, são 18%.

São Paulo - Acampamento da Frente de Luta por Moradia (FLM), contra despejo da Ocupação Mauá, em frente ao Palácio da Justiça, região central. (Crédito: Rovena Rosa/ABr)

São Paulo – Acampamento da Frente de Luta por Moradia (FLM), contra despejo da Ocupação Mauá, em frente ao Palácio da Justiça, região central. (Crédito: Rovena Rosa/ABr)

O Brasil tolera e convive com ocupações, desde que elas não incomodem o mercado ou as áreas nobres. A favela é uma “solução” para o capitalismo selvagem. Ela permite que trabalhadores mal remunerados possam sobreviver, sem apoio público, evitando que uma multidão vague e durma nas ruas…

É a “lógica da desordem”, feliz expressão cunhada pelo professor Lúcio Kowarick.

As ocupações de prédios nos centros partem da mesma “lógica”, mas têm outro significado simbólico. Expõem a pobreza e contestam a segregação, incomodando as classes privilegiadas. Garantem o direito à cidade —acesso às oportunidades propiciadas pelo centro— mesmo em um abrigo precário e inseguro. São uma anomalia ao modelo de cidade excludente.

E por que os edifícios ficam ociosos? É resultado da especulação, afirmou Boulos, tese contestada por Marcos Lisboa, para quem isso ocorre porque as empresas fogem do centro, cansadas da insegurança, sujeira e dificuldade de restaurar os prédios antigos.

Ambos têm certa razão. Prédios antigos ficam obsoletos, enquanto o mercado prefere abrir novas frentes imobiliárias, em uma lógica especulativa. Usos mais nobres abandonam a região, onde convivem diferentes classes sociais.

Aos poucos, os prédios são abandonados e seus condomínios ficam sem capacidade para reformá-los. Ao final, pouco valem, pois reabilitar é mais caro que uma nova construção. A ociosidade atrai os sem-teto.

O retrofit é dificultado pela complexidade dos projetos e pelo preço especulativo pedido pelos proprietários, que não acreditam que seus “tesouros” perderam o valor.

Por isso, os instrumentos de reforma urbana criados pelo Plano Diretor de São Paulo são essenciais para forçar os proprietários a dar função social aos imóveis. Até 2016, a prefeitura notificou 2.000 imóveis ociosos, que já deveriam estar pagando IPTU progressivo. Mas, em 2017, a ação foi paralisada.

Sem uma nova política fundiária e habitacional, as ocupações organizadas ou não continuarão. Elas fazem parte da lógica urbana brasileira.